Longa de Cynthia Erivo e Ariana Grande captura a grandiosidade política do musical com um novo olhar racial
Quando Jon M. Chu aceitou o desafio de dirigir Wicked, uma megalomaníaca adaptação cinematográfica de um dos musicais mais influentes da história da Broadway, ele tinha uma escolha crucial pela frente. Uma escolha que poderia decidir o sucesso ou o fracasso do filme: quem escalar como Elphaba.
Felizmente, sua bagagem mais que o preparou para tomar a melhor decisão. Alguém que dirigiu Podres de Rico, em 2018, e o musical In the Heights, em 2021, teria a sensibilidade necessária para enxergar algo óbvio e essencial sobre a história da maior antagonista do reino de Oz. Acima de toda a discussão política sobre poder e populismo, essa é uma história sobre raça.
Ficha Técnica
Título: Wicked – Parte I
Estúdio: Universal Studios
Estreia: 21 de novembro
Duração: 2h 41min
Gênero: Musical, drama, comédia
Diretor: Jon M. Chu
Roteirista: Winnie Holzman
Elenco: Cynthia Erizo, Ariana Grande, Michelle Yeoh, Jonathan Bailey, Jeff Goldbum e mais
Sinopse: Uma bruxa que nasceu verde precisa encontrar seu lugar em um mundo que lhe odeia.
Verde é o novo preto
A cor da pele de Elphaba, que é verde, tem uma implicação direta nos traumas e nas agressões sofridas pela personagem ao longo da trama. E isso não poderia ser ignorado — como não é nas obras originais. Mesmo com a decisão questionável de alterar o mínimo possível o texto da peça de 2003, Chu compensou explorando melhor no filme esse subtexto racial que tanto enriquece a trama, não apenas escalando a talentosa Cynthia Erizo para o papel principal, como também em escolhas artísticas na sua própria direção.
Com Cynthia no papel de Elphaba, as analogias entre o drama da personagem com as dores de uma mulher negra não poderiam ser mais evidentes.
Essa é a história de alguém que cresceu sendo diminuída, sem apoio da família ou de amigos. Que aprendeu a duvidar da extensão de suas próprias habilidades. É a história de alguém que foi ensinada a odiar a própria pele em que nasceu. E que, de repente, descobre que tem o potencial de ser muito mais. Só que, depois de anos tendo sua autoestima bombardeada sistematicamente, mesmo quando uma oportunidade se apresenta, ela duvida que sequer pode querer mais. E precisa lutar para entender que merece cada uma de suas conquistas, ainda que tenha muita gente tentando lhe derrubar.
Não é muito diferente da experiência da maioria das meninas negras, que são desde crianças ensinadas a ocupar um papel de cuidado, como Elphaba. Pensar sempre no que pode fazer para ajudar os outros, nunca em como usar suas habilidades para construir o próprio futuro. Cynthia não precisa sequer usar palavras para demonstrar como entende a sua personagem. Ela foi essa menina em algum momento de sua vida e demonstra isso no seu olhar. Por baixo de toda aquela maquiagem verde há um olhar calculado, de alguém retraído, com medo de como seus mínimos trejeitos vão ser interpretados. Desde uma orgulhosa jogada de cabelo até os menores e mais inocentes gestos.
A atuação de Cynthia ganha na sutileza, nos detalhes. Não é expansiva, na maior parte do tempo — exceto quando precisa ser, em poucas cenas bem específicas. Com isso, a atriz consegue costurar um rico contexto cultural, o peso de séculos de opressão, à sua personagem, sem precisar acrescentar uma palavra ao roteiro.
Muito da profundidade que Elphaba ganha nesta adaptação vem diretamente da interpretação de Cynthia, como na impactante cena do baile. Depois de anos precisando encarar sozinha o peso de ser diferente, de não ser aceita por quem é… Depois de esconder toda a sua dor com uma fachada de força para se blindar de novos ataques, surge um momento de alívio. Elphaba finalmente acredita ter encontrado alguém que possa defendê-la de toda essa pressão. E sem uma palavra, com uma discreta lágrima no meio de uma dança excêntrica, a bruxa desaba, como milhares de pessoas negras se sentem ao se sentirem acolhidos.
Mesmo nas cenas mais caricatas da personagem, Cynthia consegue transparecer vulnerabilidade. Não faltam momentos em que o roteiro confia em sua na atuação para preencher essas lacunas emocionais e ela sempre prova estar à altura.
Principalmente quando as canções entram em cena. Os números musicais são muito bem coreografados, fazendo um uso criativo dos cenários, mas o que chama a atenção mesmo são as performances vocais em si. Diferente de outras produções do cinema, que optam por gravar suas músicas em estúdio, separado da atuação, todas as performances de Wicked foram feitas no set de filmagem, no calor do momento. Com as atrizes completamente imersas em suas personagens, cada canção transborda emoção de uma forma muito pura e sincera. De um jeito que as apresentações conseguem assumir o papel de clímax narrativo com louvor. Dá para sentir o alívio no grito por muito tempo sufocado por Elphaba no auge de Defying Gravity, uma das canções mais impressionantes do longa.
Em outras situações, é a direção que entra em cena para extrair o máximo da personagem. Na maior parte do filme, exceto nas elaboradas sequências musicais, o trabalho de Jon M. Chu é bastante discreto e preciso. Só há uma interferência mais expressiva e artística quando o diretor precisa de elementos visuais para complementar a mensagem do roteiro. Geralmente, de forma bem elegante, para trazer à tona uma analogia bem direta e inegável entre as questões de Elphaba e o retrato racial que reflete, como no número musical de Wizard and I.
Com um jogo de luzes muito inteligente, Cynthia deixa a pele verde de Elphaba para exibir sua própria pele negra por poucos instantes. Rápido o suficiente para passar como uma ilusão de ótica, mas poderoso o suficiente para mostrar como a história daquelas mulheres se misturam. Elphaba é toda mulher racializada que já se sentiu excluída da sociedade, solitária, e sonhou em ter um lugar para pertencer. Mesmo que, às vezes, pareça mais fácil e menos doloroso apenas se diminuir para encaixar no que a sociedade espera. Afinal, esse truque visual acontece precisamente no momento em que a música reflete sobre como tudo seria mais simples se não tivesse nascido com a cor que nasceu — um pensamento intrusivo triste que muitas pessoas pretas têm ao longo de sua jornada de letramento racial, de entender o peso de ser preto na nossa sociedade.
Com isso, eles conseguem construir uma heroína que aprende a ser muito bem resolvida com sua racialidade e ao mesmo tempo muito insegura. Uma mulher forte, que supera todas as injustiças que a vida colocou em seu caminho, e ao mesmo tempo frágil, repleta de feridas que podem facilmente ser reabertas. A Elphaba de Cynthia Erizo é uma constante contradição, o que simplesmente a torna mais humana. É um retrato real de como é confusa a jornada de letramento racial de uma pessoa preta.
Ao mesmo tempo em que luta para se encontrar, Elphaba está neste lugar complexo em que representa muitas coisas para diferentes pessoas. Ao mesmo tempo é uma menina frágil e uma irmã valente, uma aluna sonhadora e uma bruxa inexperiente, uma ativista combativa e uma pessoa ferida… E Cynthia consegue navegar entre esse mar de personalidades com uma naturalidade assombrosa. Cynthia nasceu para ser a Elphaba e a personagem encontra sua melhor versão graças à atriz.
O lado branco da força
O que também é verdade para a Glinda de Ariana Grande. Talvez a maior surpresa desse filme seja como a cantora pop conseguiu entregar uma coprotagonista à altura da grandiosidade de Cynthia Erizo, uma atriz muito mais experiente do que ela. A dinâmica honesta das duas carrega o filme com uma leveza absurdamente frágil que hipnotiza. Cria uma atmosfera de que tudo está bem, mas que tudo pode ruir a qualquer momento — como uma bolha que reflete beleza, mas pode estourar com a mais suave das brisas. E os ventos da trama estão constantemente soprando contra essa amizade.
Por baixo de todo o jeitão caricato, que Ariana Grande sempre entregou muito bem desde seu trabalho como Cat de Brilhante Vitória, a atriz consegue construir uma dúvida no público imprescindível para sua personagem funcionar. Parece haver muita sinceridade nas ações de Glinda, um real conflito interno que se arrasta até os créditos finais. Uma sutileza impressionante para alguém relativamente inexperiente como atriz. Todo mundo esperava que fosse entregar vocais absurdos — o que realmente acontece, logo na primeira música, No One Mourns the Wicked — mas Ariana Grande também deu o nome na atuação.
Com isso, ela consegue construir um contraponto importante para a jornada emocional de Elphaba. Se a bruxa má traz o lado negro de uma jornada de letramento racial, Galinda abraça os questionamentos que pessoas brancas enfrentam ao tentar entender os sofrimentos de uma pessoa negra. Chega a ser cômico alguns momentos a forma iludida e nada produtiva como a garota tenta fazer a diferença. Em outros, é tocante o esforço sincero para ajudar, como consegue fazer a diferença só estando presente.
Galinda é uma pessoa completamente enebriada por seu privilégio que aprende, ao longo da trama, o que pode fazer com seu status. E que defender o que é certo muitas vezes pode exigir sacrifícios. O que está disposta a sacrificar — o seu status ou a sua amizade — é a decisão final que torna a personagem tão interessante. Afinal, mesmo quem não se posiciona diante do mal, quem apenas é conivente, querendo ou não, escolhe um lado.
Essa disposição em discutir a natureza do mal com tanta sinceridade, sem relevar suas sutilezas e complexidades, é o que torna a história tão atraente. Uma dualidade instável que está presente na atuação de todo o elenco. Do charmoso revolucionário de Jonathan Bailey a intensa professora de Michelle Yeoh, todo mundo está excelente, trazendo um leve tempero que salva esses personagens de serem apenas caricaturas, estereótipos rasos. Sempre há algo a mais bem evidente por trás de cada rosto apresentado que deixa uma pulga atrás da orelha sobre as verdadeiras intenções de todo mundo.
Wicked poderia ser só mais uma história de origem de uma vilã que ninguém pediu ou uma releitura moderna sem graça de um conto de fadas, como tantos outros filmes ultimamente. Mas já no livro original, Gregory Maguire consegue ir além. A trama é uma resposta a uma conversa sobre populismo que L. Frank Baum iniciou ainda nos seus livros sobre o Mágico de Oz, inspirado por sua sogra fortemente feminista, Matilda Joslyn Gage. E o filme perde muito ao decidir não acrescentar ainda mais a essa discussão, atualizando as metáforas do roteiro para o momento político atual.
Nem mesmo a peça teatral evitou tocar em assuntos delicados da política americana que repercutiam no momento de sua estreia. A obra original, entre músicas animadas e cenários coloridos, incluía críticas diretas ao governo não legitimamente eleito de George W. Bush, o que influenciou a forma como o roteiro original foi escrito.
Cada obra de arte é um retrato do momento político do seu tempo e o filme de Chu, por preocupações comerciais, evita ao máximo carregar a chama crítica do material original. Preferem encarar o problema de uma forma mais geral, globalizada, perdendo a chance de tecer um comentário mais contundente. O que acaba sendo especialmente gritante quando levamos em consideração que o filme estava programado para estrear poucas semanas após a eleição que poderia eleger, e que de fato acabou elegendo, Donald Trump — presidente este conhecido por fazer da perseguição de minorias sua plataforma, exatamente o que o filme quer criticar. Não havia como fugir do assunto e, como a própria história da Glinda deixa bem claro, não escolher, por si só, também é uma decisão.
Wicked poderia ser avassalador, como o tornado que levou Dorothy às terras de Oz. Mas apesar de não ter a mesma coragem do Leão das histórias, tem o coração no lugar certo, como o Homem de Lata, e uma genialidade que daria inveja ao Espantalho. Como a heroína da história, o filme tem tudo que precisa dentro de si para se tornar um clássico moderno. Entre atuações excelentes e vozes impecáveis, Wicked se consagra como uma fábula bastante didática com muito o que falar sobre letramento racial, tanto para pessoas racializadas quanto para os privilegiados. O recado foi dado. Agora, o que você vai fazer com o seu privilégio?
Wicked
Veredito
Com graciosidade e sensibilidade, Cynthia Erizo transformou ao lado de Ariana Grande uma das peças mais influentes do teatro musical em um dos filmes musicais mais potentes do cinema.
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