Diretor de Pantera Negra retorna em um filme com potencial de ser a história preta mais importante da década
A voz é uma arma poderosa. Um instrumento capaz de transmitir afeto e desprezo, de abençoar e amaldiçoar, de lançar ao mundo o que só existe na mente. Um único comando tem o potencial para proclamar guerra ou negociar a paz. Ter voz é ter poder, uma verdade que as classes dominantes estão cansadas de saber. Não faltaram estratégias para manter grupos inteiros de pessoas em silêncio ao longo dos anos, especialmente os pretos. Existe algo mais aterrorizante que ser calado quando seu peito tem tanto a dizer? Talvez ter sua voz roubada e usada contra você — exatamente o medo que alimenta Pecadores, novo terror de Ryan Coogler e Michael B. Jordan, distribuído pela Warner Bros.
Ficha Técnica

Título: Pecadores (Sinners)
Estúdio: Warner Bros
Estreia: 17 de abril
Duração: 2h 17min
Gênero: Terror
Diretor: Ryan Coogler
Roteirista: Ryan Coogler
Elenco: Michael B. Jordan, Miles Caton, Hailee Steinfeld e mais
Sinopse: Vampiros atacam um bar de jazz repleto de pessoas pretas, só não esperavam que elas fossem contra-atacar com tudo.
Em pouco mais de duas horas, Coogler constrói um perfeito retrato de como era resistir como uma pessoa preta nos meados dos anos 1930, em um país que se recusava a superar a sua recente experiência com a escravidão. Pela visão do diretor, somos apresentados a diferentes vivências de pessoas pretas no auge da segregação, sem a fetichização do sofrimento negro que veríamos nas mãos de outros cineastas.
Coogler retrata seus personagens pelo que são: pessoas tentando sobreviver como podem em uma sociedade determinada a punir sua mera existência. Temos meeiros em fazendas de algodão, artistas de rua que afogam suas mágoas no álcool, curandeiras escondidas do punitivo olhar branco, pastores atormentados pelas palavras sagradas e temidos golpistas que usam o dinheiro do crime para construir um refúgio para a sua comunidade. Pelos olhos da sociedade branca da época, todos pecadores. Não por atentar contra a moral, mas por resistirem com dignidade contra tudo e contra todos.

Quando a sua existência é criminalizada ao ponto de ser perigoso simplesmente andar pelas ruas, sob o risco de ser preso por vadiagem, se reunir para uma noite de festa é um grande ato de rebeldia. Seja em um bar de jazz nos anos 1930s ou em um baile funk nos anos 2020s — motivo pelo qual este foi o palco escolhido para a história de Pecadores. Mais do que focar em qualquer personagem individual, o roteiro está mais interessado em mostrar o poder que nasce quando pessoas pretas se reúnem para celebrar o seu sucesso, a sua ancestralidade e a sua cultura. Temas presentes tanto nos momentos dramáticos do longa quanto nos de maior suspense.
Com um diretor acostumado a comandar filmes de ação, não surpreende que Pecadores esteja mais alinhado com uma abordagem visceral deste gênero do que com o terror tradicional. Ainda assim, a compreensão de Coogler na construção de tensão é espantosa. O longa segue os passos de grandes clássicos, como Tubarão e Alien: O Sétimo Passageiro, ao construir o medo na expectativa.
Pecadores evita o explícito sempre que pode. O que não se vê assusta mais do que a confirmação dos nossos temores. Na incerteza, sempre imaginamos o pior possível e Coogler usa esta falha humana contra o público para manter todos nas pontas dos seus assentos ao longo de toda a segunda metade do filme. Mas quando decide mostrar os seus monstros, Pecadores é ainda mais espetacular.

Mesmo que vampiros, os grandes vilões da trama, tenham sido explorados à exaustão em inúmeras séries, filmes e jogos, eles ainda empolgam neste filme. Ainda são os monstros terríveis, sanguinários e cruéis das histórias clássicas. Bebem sangue, precisam ser convidados para entrar nos lugares, temem alho e morrem para prata e estacas de madeira. Mas, em meio a tudo que já sabemos e gostamos nestas criaturas, há uma camada a mais.
O roteiro aproveita a simbologia de criaturas que vivem para sugar o que há de melhor na humanidade para alimentar suas discussões sem perder o ritmo frenético de horror e ação. Mesmo nas cenas mais brutais ainda há um comentário racial sendo feito. Em uma época que o maior tesouro da comunidade negra é a sua cultura, o objetivo dos vampiros é assimilar esse poder para si. Na obra, eles representam de uma maneira nem um pouco sutil a personificação da apropriação cultural, mostrando o verdadeiro problema dessa prática para além do esvaziamento dessa pauta.
“Eles gostam do jazz, só não gostam de quem faz”, é dito em certo momento do filme — uma afirmação que se estende para as mais diversas expressões da cultura preta. Na moda, na música, no cinema, a essência da negritude vem ditando regra há muitos anos, mas as pessoas pretas são mantidas no escuro. Invisibilizadas. Silenciadas, enquanto suas palavras são apropriadas por corpos mais apreciados pela sociedade.

Os vampiros de Pecadores podem ser vistos em nossa sociedade em todos os cantos. Está no humor de Awkwafina que recebe aplausos ao roubar o sotaque preto. Está no babyhair que domina as passarelas do Fashion Week quando eram criticados na cabeça de mulheres pretas. Está no sucesso que veio ao Elvis Presley mesmo ao roubar o crédito de um gênero criado na negritude. Acontece desde que o mundo é mundo e a negritude nunca engoliu quieta essa série de desrespeitos. Denunciaram aos quatro ventos, mas ninguém quis ouvir. Até chegar na boca de pessoas que simplesmente se recusaram a ser ignoradas.
No Brasil, Lázaro Ramos trouxe o assunto à tona em Opaí Ò 2, mesmo sem tanto sucesso devido a uma abordagem muito literal. Beyoncé teve mais sorte em seu projeto de resgatar as maiores contribuições pretas para a indústria da música. Primeiro com Renaissance, que retomou a negritude inerente ao House. Depois com Cowboy Carter, que reacendeu as raízes pretas do Country. Pecadores é somente a nova voz desse movimento, apontando os holofotes para a relação histórica entre a música e a sobrevivência de comunidades pretas.
Do batuque dos tambores das religiões africanas ao hip hop e funk, tudo se mistura nas telas de Ryan Coogler. O diretor dedica um plano sequência muito bem executado para homenagear o passado, presente e futuro da musicalidade negra e o resultado é a cena mais emocionante que eu já vi no cinema em muitos anos. Não me lembro de um filme que me arrepiou tanto, com tamanha sinceridade. E o mesmo tratamento respeitoso é reservado à espiritualidade negra.

Não é um elemento central da história, mas também não é ignorado. Coogler usa a conexão emocional de Smoke, um dos gêmeos interpretados por Michael B. Jordan, e Annie, a personagem de Wunni Mosaku, para relembrar o público da força da sabedoria ancestral que existe nas religiões de matriz africana.
Rende não só uma cena linda no final, como também uma crítica branda à forma como o sincretismo religioso foi usado ao longo dos anos como forma de dominar as populações negras. Tentaram apagar os deuses que acudiam nossos ancestrais em nome de um salvador branco, tudo parte de um projeto de poder tão bem sucedido que engoliu a cultura negra moderna. Impossível ignorar a relevância de religiões europeias nas maiores comunidades negras contemporâneas, mas fechar os olhos para os perigos que vieram juntos é se negar a enxergar o óbvio.
Em meio a tantas reflexões importantes, Pecadores desponta como uma adição estelar a filmografia de Ryan Coogler. Em seu novo terror, o diretor mais uma vez propõe uma discussão didática sobre aspectos da negritude que muitos cineastas sofrem para entender. Sem as amarras do gênero de super-herói, o roteirista parece ainda mais à vontade para refletir sobre as suas origens e influências, sem abrir mão de muita ação, drama, suspense e tesão. Em uma sociedade que sufoca vozes negras há séculos, Ryan Coogler é um grito furioso que se recusa a ser silenciado — exatamente o que o cinema precisa para acordar sobre sua hipocrisia histórica.
Pecadores
Veredito
Pecadores, de Ryan Coogler, é o filme preto mais importante da década.