Mesmo sem a maturidade de outros longas da Marvel Studios, ainda entrega um thriller político competente
Em 2018, os cinemas tremeram com o rugido catártico que foi Pantera Negra. Onde quer que fosse, ao redor do mundo, salas estavam lotadas com pessoas vibrando pelo que viram nas telas. Alguns saiam das sessões chorando, emocionados. Um único filme foi o suficiente para consagrar para sempre o legado de Wakanda e sua mensagem de resistência no imaginário popular. Em uma selva de gente branca, Pantera Negra foi rei. Capitão América: Admirável Mundo Novo não passa de um gatinho assustado.
Ficha Técnica
Ficha Técnica
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Título: Capitão América: Admirável Mundo Novo (Captain America: Brave New World)
Estúdio: Disney/Marvel Studios
Estreia: 13 de fevereiro
Duração: 1h 58min
Gênero: Ação, suspense político
Diretor: Julius Onah
Roteirista: Julius Onah, Dalan Musson, Malcolm Spellman, Peter Glanz, Rob Edwards
Elenco: Anthony Mackie, Harrison Ford e mais
Sinopse: Sam Wilson precisa investigar um atentado terrorista e inocentar um amigo pego em uma grande conspiração política.
O bom e velho Capitão América
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A nova produção da Marvel Studios está longe de ser ruim. É competente como um filme de ação, da mesma forma que Capitão América: O Primeiro Vingador, e prende a atenção como um suspense político, assim como Capitão América: O Soldado Invernal. O problema é que Admirável Mundo Novo tem muito medo de arriscar qualquer inovação que poderia elevá-lo a um nível a mais.
A história acompanha Sam Wilson, interpretado por Anthony Mackie, que assume o manto do herói deixado pelo Steve Rogers de Chris Evans. Quando um colega e mentor é incriminado por um atentado político contra o novo presidente, Thunderbolt Ross, Sam não medirá esforços para expor a verdade, mesmo tenha que lutar contra tudo e contra todos.
Não é muito diferente do que aconteceu em outras aventuras do Capitão América. Se por um lado há certo mérito em trazer uma familiaridade para a trama, reforçando o pertencimento ao macrocosmos da franquia, por outro desperdiça a oportunidade de introduzir novos pontos de vista. De elevar o que já conhecemos a um novo patamar, o que, de certo modo, é feito com muita excelência nas cenas de luta.
Negritude sufocada
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Admirável Mundo Novo aproveita ao máximo o que Sam Wilson tem de especial para tornar cada luta memorável. Ainda tem um combate mais próximo, pessoal, pé no chão, em que você sente o impacto de cada soco, com um toque especial do fantástico. Novos apetrechos, como os drones pássaro, mochilas a jato e as asas de vibranium, acrescentam manobras de cair o queixo ao longo do filme. Realmente dá para sentir que temos um novo herói em nossa frente, diferente do papel do personagem na própria trama.
Esqueça todo o processo de se entender como um homem preto privilegiado em uma sociedade racista que foi cuidadosamente construído em Falcão e o Soldado Invernal. Por melhor que sejam as suas intenções, o Sam Wilson de Admirável Mundo Novo volta a ser um negro com um letramento racial questionável. Não por culpa dos roteiristas, que são os mesmos que souberam trabalhar bem a complexidade do herói na série, mas sim do posicionamento político da empresa, que mudou nos últimos anos.
Estamos falando do estúdio que mandou apagar cenas prontas de uma animação para evitar o “polêmico” tópico de juventudes transgêneros. Que investiu milhões de dólares em incentivo a políticos para que aprovassem uma lei anti-LGBTQ+. E que prometeu recentemente, na nova gestão, que deixaria de apoiar uma “agenda política” em suas produções, que notoriamente sempre defenderam o status quo.
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Toda a mudança prometida após a repercussão do caso George Floyd foi sufocada pela nova diretriz. Se Pantera Negra e Falcão e o Soldado Invernal puderam criticar o racismo, eles tiveram sorte. São a exceção, não a regra. E podemos ver essa regra em pleno efeito em Capitão América: Admirável Mundo Novo.
Forçando muito, é possível dizer que o longa toca no assunto do racismo penal, que encarcera injustamente milhões de cidadãos pretos, tanto nos Estados Unidos, quanto no Brasil. Só que é evidente que o roteiro passa o mínimo de tempo possível abordando esse assunto. Quase como se precisassem reduzir essa parte de última hora, o que explicaria os rumores de refilmagens excessivas. O resultado é meio cínico.
Estrear no mesmo período em que uma série de espaços historicamente racistas foram obrigados a baixar a cabeça para a excelência preta não ajudou a imagem do filme. Só piorou a sensação de inércia.
De um lado, vemos cantores pretos, como Beyoncé e Doechii sendo exaltadas por seu trabalho, indubitavelmente negro, no Grammy. Do outro, temos Kendrick Lamar com uma apresentação cheia de simbolismo, de história da resistência preta, no palco do maior evento esportivo da atualidade: o Superbowl. Então, temos Admirável Mundo Novo fazendo máximo possível para não deixar nenhum branco desconfortável, especialmente aqueles que votaram no Trump.
Faça da América Hipócrita de Novo
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O que acaba sendo bastante contraditório quando analisamos o que melhor funciona no filme, que é exatamente o Presidente Thunderbolt Ross, repleto de paralelos a Trump. Apresentado como um contraponto à liderança moralmente correta de Sam Wilson, o personagem de Harrison Ford é um homem sem muitos escrúpulos, atormentado pelas consequências de uma vida agressiva.
Acreditar no ideal de supremacia pela força, vendida pelos Estados Unidos, acabou com a sua vida pessoal, como visto em O Incrível Hulk (2008), mas não impediu o militar de repetir os mesmos erros no presente. Ross é um retrato perfeito do momento político dos Estados Unidos. Com o modelo de imperialismo global em colapso, ele se sente acuado, ameaçado, sem saber muito bem o que fazer, conforme novas lideranças globais emergem para ocupar o seu trono. E quanto mais encurralado o personagem se sente, mais age de forma impulsiva, irresponsável e autodestrutiva, como estamos vendo acontecer nesse breve novo mandato do Trump.
É como o caos de um formigueiro destruído. Sem a sua fortaleza, as formigas, conhecidas por sua disciplina inabalável, correm para todas as direções em desespero, sem saber para onde ir. E surpreende que o longa consiga traduzir bem este sentimento, especialmente considerando como a história termina. Quase uma autocrítica, se não estivéssemos falando de um filme que se esforça ao máximo a passar uma imagem de isenção política que não existe.
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Afinal, ao mesmo tempo em que condena as atitudes das lideranças estadunidenses, incentiva um olhar mais gentil aos responsáveis pelo genocídio palestino na figura da heroína israelense Sabre. Ela é apresentada como basicamente a versão da Viúva Negra, de Scarlet Johanson, pensada para essa história: competente, questionadora e justa, em uma tentativa nada sutil de associar essas características aos israelenses.
O esforço em redimir a imagem pública de Israel é tão ridiculamente escancarado que chegam a colocar na boca da personagem a frase: “Não podemos culpar alguém pelo seu passado”. No momento de maior pressão da população estadunidense pela responsabilização do Estado Ilegítimo de Israel por seus crimes contra a humanidade, a Disney deliberadamente se posiciona a favor de um perdão, ignorando todo o sofrimento causado.
Quando a questão traz algum benefício econômico e político, como o apoio de empresários com grande aporte financeiro, não existe assunto polêmico demais que não possa ser abordado. Agora, quando são a vida de grupos marginalizados, atacados por um governo conservador, demonstrar qualquer compaixão se torna arriscado demais.
Quem tenta agradar todo mundo…
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Exatamente essa dicotomia hipócrita que impede o filme de ir além do mediano. Capitão América: Admirável Mundo Novo é muito bem executado em tudo que se espera de um filme pipoca: repleto de ação, algumas cenas engraçadas, um elenco carismático e um suspense competente. É tão bom quanto outro filme qualquer da Marvel Studios. E aí que mora o problema.
Em uma franquia em que existem obras excelentes, como Pantera Negra, Admirável Mundo Novo se contenta em ser só um filme qualquer. Na tentativa de agradar todo mundo, o longa abandona qualquer ambição de ser uma experiência memorável.
Não é um filme que será indicado ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado, como Pantera Negra. Não é um filme com um discurso que renderá qualquer indicação de Melhor Atriz Coadjuvante, como Wakanda Para Sempre fez com Angela Basset. Ele simplesmente não tem esse impacto.
Se, com esses outros filmes pretos, as pessoas sentiram o peso de décadas de apagamento serem traduzidas com sinceridade para as telas, o novo longa da Marvel Studios estreia com o mesmo peso de um saco de lixo. Pode ser preto por fora, mas não tem muito valor por dentro.
Capitão América: Admirável Mundo Novo
Veredito
Mais um filme do Capitão América, o que nunca é ruim, mas poderia trazer muito mais.
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